segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Artigo: Parem Com a Involução!

Publicado em 01/08/2011 por justicafiscal

*Tiago Spengler

A Administração Pública no mundo, e também no Brasil, sofre de um grande mal que, de forma eufemística, tem sido chamada de “mimetismo”. O nome provém da Biologia e denomina a capacidade de certos animais imitarem padrões do seu ambiente de forma a confundirem seus predadores ou suas presas. A imitação, no caso da Administração Pública, é de conceitos e teorias da Administração que foram criados, aplicados e analisados originalmente em instituições privadas, normalmente com fins lucrativos.
“Mimetismo” é um eufemismo porque o que se vê, de maneira geral, são modismos administrativos sendo incorporados de forma acrítica nos discursos e práticas de órgãos públicos dos mais diversos. Essa imitação acaba ficando bastante grotesca, e por isso seria mais correto chamar tal prática de “Macaquismo Administrativo”. Como se sabe, macacos treinados repetem malabarismos e gracejos para a alegria da platéia sem, contudo, fazerem a mínima idéia do que estejam realmente fazendo.
O Macaquismo tem avançado rapidamente nas instituições públicas, e uma de suas marcas é o estabelecimento das onipresentes “metas de desempenho”. Aparentemente saudáveis, tais metas se propõem a medir o quão eficiente/eficaz/efetivo é o órgão avaliado. Deixando de lado as importantes distinções entre eficiência, eficácia e efetividade, que tornariam o presente artigo ainda mais longo, constata-se, já de início, que há uma confusão entre o estabelecimento de “metas de desempenho” com outra expressão já muito manjada: a “meritocracia”. Também sem entrar em detalhes nos inúmeros significados que essa expressão possa ter, a idéia geral é de que definir e cobrar metas seria a única forma de avaliar os méritos dos órgãos públicos. Em outras palavras, a qualidade da Administração Pública só poderia ser avaliada a partir de indicadores numéricos definidos de forma objetiva, e somente o atingimento (ou preferencialmente a superação) dessas metas é que garantiriam que o Estado é eficiente.
Essa visão bastante simplista da Administração Pública decorre justamente da imitação acrítica – o mimetismo (ou “macaquismo” como seria mais exato) – de teorias administrativas aplicadas já há muitos anos na administração privada. O principal problema dessa abordagem é desconsiderar a diferença entre os objetivos finais que almejam instituições privadas voltadas para o lucro e os almejados pelas instituições públicas. As primeiras almejam obviamente o lucro, enquanto as segundas almejam algo não tão óbvio –o interesse público.
Lucro pode ser definido matematicamente de forma bastante simples: lucro = receitas – despesas. Mas como reduzir o interesse público a uma simples equação? Esse abismo que separa instituições privadas e instituições públicas logo no nascedouro deveria, por si só, impedir a mera incorporação de métodos privados na Administração Pública. Porém o Macaquismo segue de vento em popa.
De todos os métodos gerenciais privados aplicados nas instituições públicas de maneira acrítica (“macaquista”, portanto), é especialmente problemática a malfadada “meta individual de desempenho”. Diferente da meta de desempenho da instituição como um todo, a meta individual busca aferir o desempenho de cada servidor público individualmente, verificando a qualidade do trabalho exercido por essa pessoa. Em outras palavras, qual seu “mérito”. Superficialmente é uma proposta interessante, até mesmo porque costuma vir embalada em uma aura de objetividade científica conferida pelo uso de números. Apesar do dito popular de que “os números não mentem”, a coisa não é bem assim.
Sem entrar no detalhe de como pode ser difícil definir indicadores numéricos relativos a cada atividade profissional dentro do serviço público e mais difícil ainda colher tais números, o problema maior é que as metas individuais incentivam a competição entre os servidores e entre as equipes de trabalho. A tendência desagregadora do ambiente de trabalho é evidente, em prejuízo tanto da qualidade do trabalho quanto da própria saúde dos servidores.
Na iniciativa privada, a utilização de metas individuais – como é praxe nas áreas comerciais, de vendas e de marketing, por exemplo – acaba internalizando a competição existente entre as empresas, o que muitas vezes pode levar a prejuízos pessoais para os trabalhadores (stress, burnout, depressão e até mesmo suicídio [vide casos recentes na França e na China]) bem como a prejuízos institucionais (imagem da empresa, queda de produtividade). Ainda assim, como o lucro, objetivo final da empresa, acaba por ser atingido, as metas individuais são vistas como uma prática exitosa na iniciativa privada.
Mas no serviço público o objetivo final não é mensurável matematicamente, e ambientes competitivos e desagregadores demonstram-se completamente contraproducentes. Cada servidor possui conhecimentos e experiências próprias, que se amplificam na medida em que são compartilhadas com a equipe da qual faz parte. Em sentido inverso, metas definidas e cobradas individualmente fatalmente levam a comportamentos do tipo “não vou ajudar fulano porque isso irá atrapalhar o atingimento da minha meta” ou “se eu ajudar sicrano, ele ofuscará o meu desempenho”.
Essa crítica vale para qualquer tipo de meta individual: número de prisões (para um policial militar), número de alunos aprovados (para um professor), número de atendimentos (para um médico), número de processos julgados (para um juiz), número de multas aplicadas (para um policial rodoviário). Em todos esses casos, a avaliação do “mérito” de cada profissional tão somente com base no atingimento da meta definida configura um claríssimo disparate. A questão é que, por melhores que sejam os eventuais indicadores numéricos (e esse não é o caso dos exemplos citados), eles nada dizem sobre o aspectos QUALITATIVOS do trabalho executado. Quando muito, dão uma visão apenas parcial e extremamente limitada do que se pretende avaliar.
No caso das Administrações Tributárias, a definição das metas de fiscalização também enfrenta esse problema. Afinal, o estabelecimento de metas, seja em termos de quantidade de fiscalizações executadas, seja em termos de valores lançados, acabam por induzir um foco em trabalhos cujos resultados podem ser medidos quantitativamente. Com metas estabelecidas dessa forma, o encerramento de uma ação fiscal sem resultado (isto é, sem lançamento de tributos) é visto como uma tragédia a ser evitada a todo custo.
O objetivo final de qualquer aparato de fiscalização, seja tributária ou não, é aumentar o que se chama de Percepção de Risco. A ideia subjacente a esse conceito é que, sendo impossível fiscalizar todos os contribuintes (no caso da fiscalização tributária), a fiscalização deve atuar de forma a tornar o risco de descumprir a lei (sonegar) maior do que o benefício com seu descuprimento. A relação é eminentemente qualitativa: maior Percepção de Risco é igual a aumentar o risco de sonegar em relação ao seu benefício. Não há números que exprimam com precisão tal relação. E isso significa dizer que, para uma análise a mais completa possível, deveriam ser levados em conta também elementos qualitativos.
Dentro desse espírito, uma ação fiscal encerrada sem resultado, mesmo que quantitativamente tenha valor nulo, qualitativamente pode ter grande significado em termos de ampliação da Percepção de Risco. Mas a ausência de indicadores qualitativos na avaliação dos resultados da fiscalização não é o único problema nesse modelo.
A situação piora ainda mais na medida em que o desempenho do servidor passa ser avaliado a partir do cumprimento ou não de metas individuais. A qualidade do trabalho, melhor dizendo, o “mérito” do servidor, resume-se a um número em uma planilha. Tem-se o pior dos mundos: suposta objetividade numérica com exacerbação da competividade em detrimento da cooperação.
Como todo método macaquista, a utilização de metas numéricas e individuais baseada na experiência da iniciativa privada é claramente equivocada, quando não mesmo contraproducente. Parâmetros qualitativos necessariamente devem fazer parte da análise de desempenho de qualquer órgão público, em todos os seus níveis. E isso vale especialmente para as Administrações Tributárias, visto que as métricas típicas, como os números de fiscalizações (meta individual) e o aumento de arrecadação (meta institucional), têm seus limites. Enquanto essa última encontra limite no que a própria sociedade aceita pagar em termos de tributos, a primeira não garante de forma automática que se atinja uma maior percepção de risco.
Felizmente as instituições públicas, Administrações Tributárias incluídas, têm sido cada vez mais cobradas quanto à sua transparência e eficiência. Os recursos públicos são escassos, e é dever dos administradores e servidores públicos apresentarem à sociedade o resultado do seu trabalho. Essa nova forma de ver o Serviço Público necessariamente precisa estar acompanhada de uma nova visão administrativa da coisa pública. O erro que tem sido cometido é simplesmente “macaquear” métodos aplicados na iniciativa privada, sem sopesar aquilo que pode ou não dar resultados em ambientes onde equações simples como “Receita – Despesa” não existem.
Não se nega que a experiência já secular da Administração privada possa trazer importantes insumos para o debate. O que se refuta veementemente é a triste prática do Macaquismo Administrativo, que, a bem da verdade, é sintoma da ainda incipiente cultura da Administração Pública voltada para o cidadão. Está na hora de parar com a involução representada pelo Macaquismo, e de avançar o pensamento administrativo no âmbito do serviço público.

*Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil

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