Por Paulo Gil Hölck Introíni*
Vamos partir de um consenso: a luta por uma Lei Orgânica do Fisco (LOF) que garanta a recuperação plena das atribuições dos auditores-fiscais e o fortalecimento das condições para exercê-las nos unifica e representa uma bandeira de interesse público.
A questão central é a de como levar esta luta adiante de forma a garantir o resultado esperado, e não o seu inverso. A preocupação se justifica pela experiência vivida a partir de 1995 e até os dias de hoje, cujo fio condutor passa pelas muitas agressões às garantias e prerrogativas do cargo público, em geral, e pelas sucessivas tentativas de retirada de nossas atribuições, em particular.
A primeira agressão ao cargo público - e a mais grave - foi a “flexibilização da estabilidade”, eufemismo criado para tornar mais ameno o ato de ferir de morte essa garantia, que muito mais do que ser um direito do servidor, existe para proteger a Administração Pública das práticas patrimonialistas e clientelistas. Com a aprovação da Reforma Administrativa (EC 19), a Constituição Federal passou a contemplar mais duas hipóteses de perda do cargo: “mediante procedimento de avaliação periódica” (art. 41, III) ou por excesso de despesa (art. 169, § 4º). Após transplantar o conceito de eficiência do mundo dos negócios, onde o objetivo é obter lucros, e alçá-lo à condição de princípio norteador da Administração Pública, os reformadores elegeram a estabilidade como o principal obstáculo a ser removido no Serviço Público.
O governo teve grande dificuldade para aprovar essa polêmica matéria, obtendo apenas um voto a mais do que o mínimo necessário. Lembro-me, com tristeza, que o governo só saiu vitorioso porque nós, servidores públicos federais, não tivemos a unidade necessária. Alguns assimilaram acriticamente o projeto do governo de separação das carreiras, entre as “típicas” ou “exclusivas” e as demais. Ora, qual modelo de Estado estava nos planos dos reformadores ao definir que médicos e professores, para citar dois exemplos, não poderiam formar carreiras tipicamente estatais? A resposta é evidente: um Estado que pudesse deixar ao mercado a prestação dos serviços de saúde e educação. Aliás, é bom que se diga, e muitos outros, como segurança, transporte, previdência etc... Ou não é isto?
A história cobrou caro essa fatura. A perda da estabilidade atingiu e fragilizou a todos igualmente. Não preservou nem os que, provavelmente, seriam incluídos entre as carreiras típicas ou exclusivas. A regulamentação em lei complementar (PLC 158) previa que, no caso de perda do cargo por insuficiência de desempenho, um servidor de carreira exclusiva poderia contar com a garantia especial de um recurso hierárquico à autoridade máxima do órgão. E só. No nosso caso, recorreríamos ao secretário da Receita. Se o procedimento de avaliação periódica até hoje não pôde ser inaugurado com vistas à perda do cargo foi porque empreendemos uma resistência obstinada contra essa regulamentação. Dessa lição da história, não temos o direito de esquecer.
O primeiro golpe foi contra a estabilidade, atingindo o Serviço Público como um todo. Depois se seguiram outros, específicos, e dirigidos a cada um dos segmentos da Administração Pública.
Especificamente quanto às nossas atribuições, a tentativa mais emblemática foi patrocinada pelo próprio chefe do órgão. A proposta (PL 77/2000) visava alterar o CTN para que o lançamento e a fiscalização fossem exercidos por servidor da Administração Tributária “em nome desta”. Se aprovada, o detentor do cargo provido em comissão, de livre nomeação e exoneração, teria o poder de decidir se emitiria ou não o auto de infração.
Na sua forma mais pura, o objetivo perseguido desde 1995, em projetos, normas legais e infra-legais foi o de desvincular o lançamento do cargo e transferir sua titularidade ao órgão no contexto de uma autarquia especial (agência executiva). Mas, outros mecanismos de subtração das atribuições também foram tentados, isoladamente ou combinados, como o compartilhamento com servidores de outro cargo e a mudança do conceito de autoridade administrativa.
Nesse mesmo período, o modelo de autonomia gerencial, administrativa e financeira foi o preferido de nove entre dez dirigentes da cúpula da Receita Federal. As razões são óbvias: inspirado por conceitos, métodos e técnicas oriundos da iniciativa privada, o modelo de autonomia pressupõe o aumento da autonomia decisória dos “gerentes” (empowerment). O projeto Propessoas (2007), com sua proposta de criação de uma carreira gerencial, como se fosse dissociada dos Auditores Fiscais, é um exemplo bem (mal) acabado nessa direção.
A Emenda 19/98 deu o contorno normativo ao modelo, quando previu a possibilidade de ampliação da autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta mediante contrato de gestão, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade.
A palavra autonomia transmite uma idéia de coisa boa, mas é preciso tomar cuidado. Não se trata de autonomia técnica aos agentes, mas de autonomia ao órgão, ou mais precisamente, aos dirigentes do órgão. A autonomia pretendida traduz um projeto de poder. Trata-se de transformar autoridade (conferida por lei) em poder (da esfera da política). É condição exigida pelo poder econômico para que possa exercer melhor o controle político do aparelho Estado. Este é o sentido da Reforma Administrativa iniciada em 1995 e que segue a sua marcha, incólume.
A penúltima tentativa de dar autonomia administrativa e financeira à Receita Federal ocorreu por meio da Medida Provisória n 71/2002, num momento que guarda muitas semelhanças com o atual, caracterizado pela mudança próxima de governo. Bem mobilizados, conseguimos evitar aquela mudança tentada no apagar das luzes.
E a última tentativa ocorre justamente agora. Confirmando a tendência verificada por meio da análise histórica e reafirmando o seu projeto, a Administração da RFB reapresentou a sua proposta de autonomia, reincidente dos mesmos vícios: de um lado, super poderes ao secretário, de outro, a distorção da definição de quem seja a autoridade administrativa.
Compõem, ainda, essa sucessão de agressões, as ameaças vindas do Congresso Nacional, como o Código de Defesa do Sonegador e a Emenda 3, entre outras propostas anti-republicanas. Está respaldada pela realidade, a avaliação de um ex-dirigente da Associação Nacional dos Procuradores da República que, em entrevista, ponderou que os riscos para a aprovação da Lei Orgânica do Ministério Público seriam muito maiores. Poderia entrar uma Lei Orgânica no Congresso Nacional e dali sair uma lei da mordaça.
Diante desse dramático histórico, nós deveríamos refletir bastante sobre a forma, o momento e a estratégia de reivindicar um “upgrade” de garantias e prerrogativas. Não basta um copiar/colar do Ministério Público ou dos Magistrados. No universo da política, querer não é poder; querer é somente desejo; poder é correlação de forças. Não se pode jogar a categoria numa aventura comprometedora do interesse público e de sua própria sobrevivência. É preciso organização, mobilização e alianças corretas, com aqueles que conferem legitimidade ao nosso trabalho e às nossas lutas.
As evidências do perigo encontram-se novamente à nossa frente. A LOF da Administração subverte o sentido público da idéia original e inverte o sinal do resultado esperado pela categoria, tornando-a inaceitável.
Debates aprofundados, como o promovido pela DS Salvador, têm importância vital porque resgatam a discussão do contexto histórico, impedem que o assunto escorregue em mitificações, particularismos ou formulações simplórias, desfazem as falsas dicotomias e resultam na superação das análises simplificadoras da realidade. Trazem o assunto para o seu verdadeiro foco, fornecem ferramentas para a formulação de estratégias e, assim, dão grande contribuição à unidade da categoria.
Luz do dia e ambiente arejado são duas condições que não podem faltar na discussão de assunto tão importante quanto a Lei Orgânica do Fisco (LOF), quanto mais, neste momento, em que talvez precisemos passar da expectativa de avanço para a organização da resistência. Se assim for, não será a primeira vez.
*Auditor Fiscal da RFB
Diretor de Estudos Técnicos da DS Campinas/ Jundiaí
Um comentário:
A passagem do tempo e o sucesso popular do governo Lula não foram suficientes para formular novas concepções do que seria uma moderna Administração Pública harmonizada ao interesse pública, impera ainda o pensamento dos anos noventa, hegemonizado pela visão financista, que ainda nos assombram apesar de suas crises. Qualquer mexida neste cenário de correlação de forças ainda desfavorável é apostar no risco. A proposta da Administração assim se revela ao não assumir claro compromisso com o interesse público. Há sonhos que se revelam pesadelos desde seu início. Acorda Pedro! Acordemos todos nós AFRFBs. Não podemos abandonar nossa vigília como bem lembrou Paulo Gil. Sempre vigilante.
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