segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Justiça Fiscal e Previdência Social


Por Paulo Matsushita*
Publicado em 21/11/2012 por justicafiscal 
Dentre as diversas conquistas, nos anos 80, decorrentes da luta por uma Assembleia Constituinte, no quadro do regime militar instaurado em 1964, resultando na Constituição Federal de 1988, está, sem dúvida, a consolidação do conceito de Seguridade Social.

De fato, o art. 194 da Constituição, estabeleceu um novo patamar histórico de proteção social, consolidando as lutas seculares do povo brasileiro, ao entrelaçar, num “conjunto integrado”, “direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”, sob os marcos, entre outros, da universalidade, da irredutibilidade do valor dos benefícios e da diversidade da base de financiamento.

O art. 195 da Constituição, elo imprescindível do artigo anterior, garante os recursos orçamentários e as contribuições sociais para a sustentação da rede básica de proteção social, ou seja, ficaram garantidas as receitas para o financiamento do mais amplo programa social que o país jamais teve. 

Os recursos originários da contribuição do empregador e do trabalhador sobre a folha de salários ficaram garantidos, em Emenda Constitucional posterior, exclusivamente para o pagamento de benefícios do regime geral de previdência social (cf.
Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

Todos os avanços sociais que as lutas populares conseguiram incluir na Constituição, em 1988, ocorreram, curiosamente, na contramão do processo histórico internacional, pois, naquele momento, com a derrocada do bloco do socialismo liderado pela União Soviética, foi eliminado o constrangimento do sistema de livre mercado de circular sem freios, em escala global e, assim, uma nova fase de liberalismo desenfreado veio a impor-se, pondo em xeque o planejamento econômico, a contenção da agressividade do capital e a primazia dos direitos coletivos e sociais sobre a busca do lucro e o jogo supranacional das grandes corporações econômicas.

O Chile, após o golpe militar do general Pinochet, em 1973, foi um laboratório ainda isolado para uma grande investida liberal, nos anos 80, principalmente sob o impulso de Ronald Reagan, nos EUA, e Margareth Tatcher, na Inglaterra. Em todo o mundo, as forças liberais ligadas ao grande capital começaram a impor, com os seus meios próprios de comunicação e influência cultural e ideológica, uma crítica do Estado de Bem Estar Social e dos sistemas de proteção social, tachando-os de caros e dispendiosos, enquanto sustentados pelo Estado.

Com isso, 1988 já começou a ser desconstruído em 1989, em nosso país, com a primeira campanha presidencial com voto direto após o regime militar, na qual as velhas forças conservadoras voltaram a organizar-se, de forma desesperada, com a figura de Collor, no esforço de fazer o “atualização” liberal do país. Em outras palavras, os setores de nosso país que sempre estiveram, secularmente, associados ao grande capital internacional, encararam a cristalização dos direitos sociais, na ordem constitucional de 1988, como um revés e, desde então, os pilares desse sistema passaram a ser sucessivamente atacados pelas vias políticas e pela comunicação social ligada ao grande capital.

A disputa em torno de um Estado suficientemente estruturado para conter a agressividade do capital e garantir o bem-estar social, com capacidade política de exercer justiças tributária e fiscal, passou, então, a ser a tônica do debate político contra o “consenso” liberal (formulado com base em proposição do economista John Williamson e adotado por FMI, Banco Mundial, Departamento do Tesouro dos EUA, entre outras instituições multilaterais).

No Brasil, a apropriação pelo campo liberal do conceito de “Reforma” passou a ser o mote para o processo de corrosão de todos os fatores limitadores à livre circulação do capital. 

Assim, a partir dos anos noventa o Brasil alinhou-se à hegemonia liberal reinante desde os anos 80 e a Previdência Social pública e em regime de solidariedade entre as gerações foi o centro dos interesses contrários do grande capital, especialmente das corporações financeiras. Trata-se de uma ironia histórica, pois, mesmo na fase do nacional-desenvolvimentismo, quando o Brasil foi a economia que mais cresceu em todo o mundo, entre os anos 30 a 80, nunca o sistema de proteção social abarcou mais do que cinquenta por cento da população economicamente ativa. Ou seja, o Estado de Bem Estar Social nunca se realizou plenamente no Brasil e na nossa economia historicamente periférica, desigual e concentradora e, mesmo assim, as forças conservadoras já se dispunham a atacar as conquistas do povo brasileiro, alcançadas em 1988.

Não é pouca coisa, por isso, que a Constituição de 1988 tenha estabelecido o marco de “universalidade” para o sistema de proteção estruturado em torno do novo conceito de Seguridade Social. Isso quer dizer que a sociedade passa a ter uma responsabilidade coletiva sobre o infortúnios e o ciclo da vida da totalidade (“universalidade”) dos indivíduos; em outras palavras, é o Estado e não é o individuo isoladamente (como pretende a ideologia liberal), a família, as organizações religiosas ou de caridade que dão conta do desemprego, da velhice, da doença, da perda de capacidade laboral, da necessidade de afastamento do trabalho para o cuidado com os recém-nascidos, etc.

Devido à sua representatividade financeira, dentro dos programas da Seguridade Social, a Previdência Social passou a ser o centro dos ataques das forças conservadores e a principal estratégia foi o discurso continuado e persistente, nos grandes veículos de comunicação, do suposto “déficit da Previdência”. Esse discurso se assenta sobre uma falácia, qual seja, a de comparar as receitas da contribuição previdenciária com as despesas previdenciárias, mas essa falsa “contabilidade” não tem bases constitucionais, porque um dos princípios essenciais da Seguridade Social é que se trata, conforme o art. 194, de um “conjunto integrado (grifo nosso) de ações dos Poderes Públicos e da sociedade”. Por se tratar de um conjunto integrado, portanto, não há que se falar de uma “contabilidade” só da Previdência Social. Assim, os trabalhadores e os movimentos sindicais, sociais e populares não podem aceitar que o discurso do “déficit da Previdência” (anunciado todos os meses pelos grandes veículos de comunicação) funcione como um aríete para rebaixar as conquistas históricas de 1988.

A ação continuada, na sociedade, das forças conservadoras sobre todos os governos brasileiros, sem exceção, a partir de Fernando Collor de Melo e até o atual, de Dilma Roussef, seja em coalizões sob a liderança do PSDB ou do PT, levou a sucessivos processos de “Reformas” (em verdade, “contrarreformas”) com, inevitavelmente, corte ou rebaixamento de direitos na Previdência Social pública.

Após mais de três anos de tramitação, Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro Governo, aprovou a Emenda Constitucional n° 20/1998, golpeando a Previdência Social pública com, entre outras, as seguintes descaracterizações:

Introduziu uma mudança conceitual sutil, mas de graves conseqüências para os trabalhadores com o fim da aposentadoria por tempo de serviço, substituída pela aposentadoria por tempo de contribuição, ou seja, um direito – o de aposentar-se após o declínio da capacidade laboral – é substituído por uma relação financeira;
Foi introduzida a idade mínima nas regras transitórias para as aposentadorias do setor privado e para os trabalhadores do serviço público (em verdade, o Governo foi derrotado, pois pretendia impor a idade mínima para todas as aposentadorias);
Criou-se a previsão de privatização parcial do seguro de acidentes de trabalho;
O teto do valor dos benefícios foi fixado em reais (R$1.200) na data da aprovação da Emenda Constitucional e, posteriormente, reajustada pelos mesmos índices aplicados aos benefícios, ou seja, o teto deixou de ser fixado em salários-mínimos, o que está levando a um progressivo achatamento do limite máximo;
Foi desconstitucionalizada a regra de cálculo dos benefícios, o que abriu espaço para o perverso “fator previdenciário” (introduzido pela Lei n° 9.876/1999), que nada mais é do que um redutor de aposentadoria, disfarçado sob a capa de uma fórmula algébrica aparentemente sofisticada e insondável:

CÁLCULO DO FATOR PREVIDENCIÁRIO

 
 
 
Onde:
f = fator previdenciário;
Es = expectativa de sobrevida no momento da aposentadoria;
Tc = tempo de contribuição até o momento da aposentadoria;
Id = idade no momento da aposentadoria;
a= alíquota de contribuição correspondente a 0,31.


A segunda ironia histórica é que Lula, dirigente histórico do PT, Partido que liderou uma frente de Partidos e movimentos sociais contra as reformas constitucionais do Governo Fernando Henrique, empreendeu, como Presidente, por sua vez, “reformas” previdenciárias que mesmo o seu antecessor não foi capaz de implementar e, dessa vez, atingindo os trabalhadores do serviço público, por meio das Emendas n° 41/2003 e 47/2005 que introduziram as seguintes modificações, entre outras:

Imposição de tempo de permanência no serviço público e no cargo como critério para obtenção de aposentadoria;
Perda da paridade e da integralidade (ou imposição de pesados requisitos para esse fim) em relação aos proventos dos trabalhadores na ativa;
Extinção da aposentadoria proporcional;
Contribuição previdenciária de aposentados e pensionistas (uma aberração);
Imposição de redutor para as pensões;
Redução drástica da aposentadoria por invalidez quando não decorrente do trabalho;
Fim da paridade para a aposentadoria por invalidez;
Fim da paridade e da integralidade para a aposentadoria compulsória

A Presidente Dilma, por fim, afirmou, logo no início do seu Governo, que não faria novas reformas previdenciárias, mas, na prática, desengavetou e usou a força do Governo para aprovar projeto-de-lei (PL 1992/2007) que instituiu a Previdência Complementar ( na prática, uma privatização parcial do Regime Próprio) para os trabalhadores do serviço público federal, extensiva às demais instâncias federativas, com a criação do Funpresp (Fundo de Previdencia dos Servidores Públicos)

Além do mais, a Presidente Dilma voltou a prorrogar o perverso mecanismo de transferência disfarçada e forçada de recursos da Seguridade Social, conhecido como DRU – Desvinculação das Receitas da União, que, mais uma vez, impõe nova derrota à arquitetura da Seguridade Social de 1988. Só em 2012 serão R$62 bilhões retirados da Previdência Social, da Saúde e da Assistência Social. A título de comparação, por exemplo, dados do próprio Ministério da Saúde avaliam que com mais R$45 bilhões seria possível revolucionar o SUS.

O ciclo histórico internacional da hegemonia liberal tem um corte em 2007, quando o capitalismo sofreu o seu maior abalo desde o solavanco de 1929.

O “consenso liberal” foi colocado em questão, a magnitude e o alcance do desajuste do capital não estão ainda totalmente dimensionados, mas é fato que o estancamento da crise – nos EUA, na Europa, no Brasil – aconteceu com o Estado assumindo um papel protagonista, mas totalmente em benefício do grande capital e sem que os fundamentos da doutrina liberal fossem claramente contestados, tanto é que a crise grega, por exemplo, trouxe à tona o velho receituário de congelamento e/ou corte de salários, aposentadorias e pensões, estendendo-se, posteriormente, para a Irlanda, a Espanha, a Itália e outros países europeus.

A luta dos setores populares na defesa da rede pública de proteção social – o arcabouço mais sofisticado a que a sociedade já chegou de solidariedade coletiva – contra o fragmentação e a apropriação privada e concentradora das riquezas, por obra do grande capital, será, sem dúvida, o embate mais decisivo nessa primeira metade do século XXI.
 
 
*Paulo Matsushita é Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil e Vice-Presidente da Delegacia Sindical Campinas/Jundiaí do Sindifisco Nacional
 

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